As cidades constroem-se por cima das cidades. Esta é uma ideia que quer os arqueólogos, quer os arquitectos pressentem na realidade do seu trabalho cotidiano, que os condiciona, que os motiva e que está na raiz do futuro de qualquer cidade.
Desde que o Homem se sedentarizou, isto é, desde que os bandos de caçadores recolectores nómadas em busca dos melhores terrenos de caça deram origem ao assentamento permanente em aldeias cujos habitantes passaram a viver da agricultura e da criação de gado, que o tipo de habitação se modificou e passou a ter um carácter estável, com a adoção de materiais como o adobe, o tijolo e a pedra, para além da madeira, utilizada desde sempre.
Constatamos isso em povoados tão antigos como Çatal Hüyük (Anatólia, sul da Turquia) ou Jericó (Palestina), talvez as cidades mais antigas que se conhecem, construídas entre 8.000 e 7.000 a.C., e onde as construções se foram sucedendo, sendo as cidades ampliadas horizontalmente, mas também à custa dos derrubes das construções anteriores, aproveitando-se muitas vezes os seus alicerces para sobre eles se erguerem novas construções.
O Porto não terá sido diferente. Mas quem o sobrevoa, quem chega da outra margem ou quem percorre as suas ruas e observa o seu casario, não tem essa percepção, vê apenas aquilo que os seus olhos captam, as ruas, as casas, os prédios, as infra estruturas, não se lembrando que esta é apenas a nossa cidade, não a dos nossos avós e outros ancestrais.
Essas, as cidades deles, estão por vezes enterradas debaixo da nossa e, num momento em que o Porto vibra com a sua recuperação, sobretudo com a recuperação do seu Centro Histórico, os sinais dessas “cidades” que nos antecederam vêm ao de cima.
Talvez os vestígios mais antigos se encontrem no edifício da Rua D. Hugo, nº5, por detrás da Sé, onde foi possível sequenciar uma ocupação com vestígios desde o século VIII a.C., com casas de planta redonda. A que se sobrepõem casas já do período romano, de planta quadrangular.
Outro fantástico exemplo da forma como a cidade se foi construindo, é-nos fornecido pelas escavações arqueológicas da Casa do Infante, já numa zona baixa da cidade, em que a uma grande e luxuosa casa romana e tardo-romana (Séc. IV-VI) se sobrepõem as construções medievais, com a edificação dos armazéns do Rei, da Alfândega Régia e da Casa da Moeda, perdurando a sua ocupação e sucessivas ampliações ao longa da Idade Moderna e Contemporânea.
Mas o exemplo que vamos dar é igualmente representativo: numas obras dum edifício com frentes para a rua de S. Francisco e para a Rua Nova da Alfândega, onde esteve sedeada a antiga empresa de trânsitos A. J. Gonçalves de Moraes, em escavações aí realizadas apareceram vestígios da cidade oitocentista, mais concretamente o antigo quarteirão dos Banhos.
Aterrado quando das grandes transformações urbanísticas inerentes à construção do edifício da Alfândega Nova (1860-1870), construção da Rua Nova da Alfândega e da Rua Ferreira Borges, que implicou a destruição do Mosteiro de S. Domingos, o velho quarteirão dos Banhos ficou sepultado sob 5 metros de entulho.
As escavações mostraram uma outra faceta da cidade, uma zona ribeirinha e mal-afamada, que começava no areal já descrito por Ranulfo de Granville em 1147 e onde se situavam uns dos balneários da cidade, junto ao postigo dos Banhos e à Rua dos Banhos.
Fui uma dessas vielas, ainda com edifícios dos dois lados que foi posta a descoberto. Uma das casas, defronte da porta de entrada ladeada por janelas com grades de ferro, tinha um pátio lajeado.
Numa zona contígua, por debaixo cerca de um metro, o forte alicerce do que pode ter sido o edifício medieval dos banhos públicos. A escavação ficou por aí.
Mas o achado de materiais de construção romanos pode indiciar a presença de vestígios bem mais antigos…
Marcelo Mendes Pinto – Arqueólogo. Investigador CITCEM
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